Sabe-se que a prisão de natureza cautelar deve ser a exceção e jamais a regra.

Ao menos nesse sentido tem se manifestado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: 


PRISÃO PREVENTIVA – EXCEÇÃO – FUNDAMENTOS. A prisão preventiva há de guardar sintonia com o figurino legal, porque, revelando excepcionalidade, inverte a sequência natural das coisas, prendendo-se, para, somente após, apurar-se. (…)[1]

Contudo, hodiernamente, tem se notado que todos os processos com repercussão midiática se iniciam com a decretação da prisão cautelar dos envolvidos. Pior, também tem se observado que o órgão acusador, por estratégia processual própria, tem fragmentado os procedimentos, tratando fatos conexos em procedimentos autônomos e distintos.

Nestes casos, a estratégia do órgão encarregado da acusação é requerer a prisão dos envolvidos em cada um dos procedimentos, embora referidos procedimentos tratem de fatos conexos. O judiciário, por seu turno, tem decretado as prisões. Como consequência, se observa que réus envolvidos em fatos conexos, porém desmembrados por estratégia deliberada da acusação, possuem múltiplos decretos de prisão cautelar. Resta saber, contudo, se tal procedimento é juridicamente adequado?

A resposta, objetivo deste trabalho, deve ser negativa. Observe-se: tal proceder adotado exaustivamente pelo judiciário brasileiro em tempos recentes– operação Lava Jato, operação Publicano, dentre outras – é juridicamente inadequado e merece uma reflexão.

Faz-se essa afirmação porque se sabe que a prisão de natureza cautelar, além de excepcional, deve estar fundada no binômio fumus comissi delicti e periculum libertatis. A propósito, ausente um destes requisitos, torna-se desnecessária a prisão de natureza cautelar.

O escólio jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal é lapidar:

Prisão preventiva. Decretação por força da mera gravidade da imputação, sem base em elementos fáticos concretos. Inadmissibilidade. Medida que exige, além do alto grau de probabilidade da materialidade e da autoria (fumus commissi delicti), a indicação concreta da situação de perigo gerada pelo estado de liberdade do imputado (periculum libertatis) e a efetiva demonstração de que essa situação de risco somente poderá ser evitada com a máxima compressão da liberdade do imputado[…][2]

Assim, se existe contra um determinado acusado o trâmite de várias ações penais, todas elas desmembradas, porém conexas entre si, e em uma delas a autoridade judicante já decretou o arresto preventivo, torna-se evidente que deixa de existir, em relação aos demais procedimentos que tratam de fatos conexos, o periculum libertatis.

Como consequência, ausente o periculum libertatis, como frisa toda a jurisprudência, deixa de existir um dos fundamentos que justificam a prisão, principalmente quando os fatos tratados nos múltiplos processos existentes conectam-se, instrumentalmente, entre si.

Em outras palavras, como se pode sustentar a existência do periculum libertatis se o acusado já se encontra preso preventivamente em um processo que trata de fatos instrumentalmente conectados com aqueles que estão sendo tratados nos procedimentos sucessivos?

Aluda-se que não se está a sustentar a impossibilidade de existirem várias prisões preventivas decretadas contra um determinado acusado, mas sim a impossibilidade de coexistirem várias prisões cautelares, contra um determinado acusado, em processos que tratam de fatos conectados instrumentalmente entre si. Até porque, nesses casos, a regra é a unicidade da ação.

Portanto, se a fragmentação dos fatos e a multiplicidade de procedimentos decorrem de uma estratégia deliberada da acusação, deve-se interpretar que a primeira prisão preventiva decretada determina o esvaziamento do periculum libertatis em relação aos demais fatos conexos, sendo irrelevante o número de processos instaurados para fins de novos decretos de prisão preventiva.

De qualquer forma, na hipótese de os argumentos aqui trazidos serem considerados insuficientes, deveria o magistrado, antes de decretar a nova prisão cautelar, tendo em vista que o agente já se encontra preso preventivamente, oportunizar à defesa o contraditório prévio previsto no artigo 282, § 3º, do Código de Processo Penal.[3]

Perceba-se que o legislador processual penal foi categórico em ressalvar que nos casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida o juiz não está obrigado a oferecer o contraditório prévio à defesa. Todavia, como na hipótese em debate o acusado já se encontra preso preventivamente, parece óbvio que o contraditório prévio lhe deve ser ofertado, sob pena de violação ao devido processo legal.

Conclui-se, portanto, que fatos conexos, mesmo que tratados em procedimentos autônomos e variados, não autorizam, após o primeiro decreto de prisão preventiva, a decretação de outras prisões cautelares, pois ausente o periculum libertatis. Na remota hipótese de remanescer o periculum libertatis, o que se admite apenas por apego ao debate, o novo decreto de prisão deve ser precedido do contraditório prévio previsto no artigo 282, § 3º, do Código de Processo Penal.

Alessandro Silverio

OAB/PR 27.158

Texto publicado por Silverio e Vianna Advocacia Criminal

©Todos os direitos reservados

 


[1] HC 124.787, julgado pela 1ª turma do Supremo e relatado pelo Ministro Marco Aurélio. Publicado  DJe. 24/06/2015.

[2] HC 122.057, julgado pela 1ª turma do Supremo e relatado pelo Ministro Dias Toffoli. Publicado  DJe. 10/10/2014.

[3] “Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

(…)

§ 3o Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).”