Sabe-se que o Ministério Público é o órgão público competente para oferecer a denúncia em face daquele que supostamente agiu em desacordo com a lei. Entretanto, antes de tudo, o Ministério Público é o fiscal da lei, e como tal, deve ser o primeiro a respeitar o texto normativo.

 

Assim, ao propor a peça que inaugura o processo penal, deve obrigatoriamente, sob pena do seu indeferimento, respeitar a regra contida em lei. O ordenamento jurídico brasileiro exige uma narração completa, em que se possibilita a verificação dos elementos constitutivos do tipo e as circunstâncias que o caracterizam. Ainda, é imprescindível que a denúncia seja precisa ao realizar a determinação do fato de modo a não causar dúvidas.

 

Contrário sensu, a denúncia genérica preocupa-se tão somente com a narrativa superficial dos fatos, sem que se observem as condutas precisas e individualizadas de cada um dos acusados na prática do crime.

 

Antes da Constituição da República de 1988, o Supremo Tribunal Federal possuía entendimento de que em casos de crimes societários poderia o Ministério Público abster-se da discriminação das condutas individuais[1]. Como se pode perceber:

 

“EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME SOCIETÁRIO. DENÚNCIA INEPTA. DESCRIÇÃO PORMENORIZADA DE CONDUTAS. ENTENDIMENTO DO STF. O STF tem jurisprudência a dizer da tolerância que se impõe à denúncia – nos crimes societários – sobre a eventual impossibilidade de não se encontrar o parquet habilitado, desde o início, para individualizar culpas. Em feitos desta natureza, a impunidade estaria assegurada se se reclamasse do Ministério Público, no momento da denúncia, a individualização de condutas, dada a maneira de se tomarem as decisões de que resulta a ação delituosa. Ordem denegada.”[2]

 

Felizmente, depois da promulgação da Carta Magna de 1988, a Suprema Corte Brasileira evoluiu seu entendimento quanto à descrição dos fatos com todas as suas circunstâncias, passando a exigí-la também nos crimes econômicos e societários, mesmo com a característica de difícil individualização do sujeito ativo.

 

A bem da verdade, o representante ministerial que não se atenta aos requisitos impostos e narra tão somente a conduta principal deverá ter a sua peça acusatória ser rejeitada por inépcia[3]. Conforme precedente jurisprudencial:

 

“CRIMINAL. HC. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. HC CONTRA INDEFERIMENTO DE LIMINAR. CRIME SOCIETÁRIO. IMPUTAÇÃO BASEADA NA CONDIÇÃO DE SÓCIO DE EMPRESA. NECESSIDADE DE DESCRIÇÃO MÍNIMA DA RELAÇÃO DO PACIENTE COM OS FATOS DELITUOSOS. INÉPCIA DA DENÚNCIA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. SUSPENSÃO DO CURSO DA AÇÃO PENAL ATÉ O JULGAMENTO DO MÉRITO DO WRIT ORIGINÁRIO. ORDEM CONCEDIDA.”[4]

 

O recebimento da denúncia genérica desrespeita uma série de princípios e garantias ao acusado. Ademais “essas acusações se acolhidas pelo juízo criminal, possuem um efeito criminógeno espetacular: o de transformar o processo em verdadeira pena para o acusado”[5].

 

No tocante ao princípio da dignidade humana, é visivelmente violado no caso em que exista um acusado sem qualquer relação com os fatos narrados na denúncia, mas que independentemente disso figura como réu em processo criminal pelo simples acaso de figurar no contrato social de determinada empresa na posição de sócio, gerente, administrador, entre outros cargos. Enfim, são submetidos ao processo por uma condição objetiva.

 

Mesmo que ao final do trâmite processual o indivíduo venha a ser absolvido, certamente a decisão não fará com que se afaste todo abalo psicológico causado em razão de uma acusação injusta, tampouco a repercussão. Na realidade, ambos afetam profundamente a esfera dos direitos da personalidade do acusado.

 

Por sua vez, o princípio do devido processo legal sustenta que ninguém será privado de sua liberdade, ou de seus bens, por meio de um processo desenvolvido de forma contrária da estabelecida em lei, pois “isso implica a adoção do procedimento contraditório, na plena igualdade entre acusação e defesa”[6].

 

Vale mencionar que a obediência deve estar relacionada com a lei processual penal da mesma forma que deve estar vinculada com o devido processo constitucional, pois, como se sabe, a maioria dos direitos e garantias individuais estão postulados na Lei Suprema. Isto significa dizer que a denúncia genérica, contrariando os dispositivos constitucionais, viola o devido processo constitucional e, reciprocamente, viola o devido processo legal.[7]

 

Ainda, a denúncia genérica, sendo uma acusação vaga e imprecisa, acaba por inverter o ônus da prova, fazendo com que a defesa se obrigue a comprovar a inocência do acusado.[8]

 

No tocante ao princípio da ampla defesa e do contraditório, pode-se perceber seu desrespeito, na medida em que se restringe o pleno exercício de defesa.

 

Diante de todo o exposto, comprova-se que a amplitude da defesa está relacionada com a amplitude da acusação, sendo que “a defesa do acusado somente será ampla se os fatos estiverem corretamente e exaustivamente descritos na denúncia”[9].

Mauren Otto
Graduanda em Direito 

Texto publicado por Silverio e Vianna Advocacia Criminal

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[1] FERREIRA, Aureliano Coelho. Breves comentários acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/artigo/10182-Breves-comentários-acerca-da-responsabilidade-penal-da-pessoa-jur%C3%ADdica>. Acesso em: 28/08/14

[2] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. HC 75.903/CE, da 2a Turma. Relator: Min. Francisco Rezek. Julgado em 12.11.1996. DJ 25.04.1997

[3] JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de janeiro: Forense. 1995. p. 147

[4] STJ. HC 56.058/SP, 5a Turma. Relator: Min. Gilson Dipp. Julgado em 15.08.2006. DJ 11.09.2006.

[5] GOMES, André Luís Callegaro Nunes. Consequências da acusação sem provas. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/2992-Conseqüências-da-acusação-sem-provas:-o-processo-como-pena> . Acesso em: 31.08.14

[6]MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2a ed. Campinas: Millennium, 2000. p.83

[7] KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica nos crimes econômicos. Porto Alegre: Núria Fabris. ed., 2013. p. 154

[8]KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica nos crimes econômicos. Porto Alegre: Núria Fabris. ed., 2013. p. 160

[9] SANTIAGO,  Nestor Eduardo Araruna. Criminalidade econômica, denúncia genérica e devido processo legal. In: GALUPPO, Marcelo Campos; FEITOSA, Raymundo Juliano; MEZZAROBA, Orides (org.) Anais do XVI Congresso Nacional do Conpedi. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, v. 1, p. 2230. Apud: KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica nos crimes econômicos. Porto Alegre: Núria Fabris. ed., 2013. p. 161