Após longo período em que vigeu no País a ditadura imposta pelos militares, o restabelecimento do regime democrático levou à promulgação da Constituição de 1.988. Recém saída dos anos de chumbo, a sociedade clamava por liberdade e respeito aos direitos individuais. Por tal motivo, o legislador constituinte originário, logo no preâmbulo da nova Carta, consignou expressamente que o Estado Democrático que se inaugurava destinava-se a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade” como valores supremos da sociedade.

Não por acaso, a dignidade da pessoa humana foi erigida a fundamento da República (CF, artigo 1º, III), seguindo-se no artigo 5º da Carta Política extenso rol de direitos e garantias assegurados a toda e qualquer pessoa. Aludido rol representa o franqueamento de amplo espaço de liberdade pública ao particular, ao mesmo tempo em que impõe severas restrições à atuação estatal.

Em suma, ao dizer que a dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado Brasileiro, o legislador constituinte originário promulgou uma Constituição antropologicamente amiga, na qual a pessoa humana é o início, o fim e o meio do poder estatal. Isto é, o estado existe e funciona em razão do – e voltado ao – particular.

E, ao estabelecer como regra o princípio da liberdade, especificado em hipóteses não exaustivas no longo rol do artigo 5º, a Constituição Federal normatizou que qualquer restrição aos direitos ali previstos somente se justifica em hipóteses excepcionais. De acordo com elementar regra de hermenêutica, a regra é interpretada de maneira extensiva e a exceção deve ser interpretada sempre de maneira restritiva. Aliás, esse é o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, ao menos desde 1.985, tem reiteradamente decidido que a adoção do princípio pro homine implica na prevalência da interpretação extensiva dos direitos humanos.

A doutrina costuma tratar como sinônimos as expressões direitos humanos e direitos e garantias individuais. Ingo Wolfgang Sarlet esclarece que a nossa Constituição Federal, na linha dominante no direito comparado, optou por utilizar a segunda expressão, sendo a primeira mais utilizada no âmbito da filosofia política e das ciências sociais[1]. Contudo, repita-se, ambas são expressões sinônimas.

No inciso LVII do artigo 5º de nossa Constituição, o legislador constituinte originário normatizou em nosso ordenamento jurídico o princípio da presunção de inocência[2], com a seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

O dispositivo constitucional é de clareza solar: só pode ser considerado culpado aquele que teve contra si uma sentença penal condenatória transitada em julgado. Ora, se o acusado só pode ser considerado culpado após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, como se poderia admitir que, após o julgamento de eventual recurso de apelação, ele pudesse iniciar o cumprimento da pena, sob a justificativa de que os recursos especial e extraordinário não possuem efeito suspensivo?

Essa indagação veio à lume com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Assim, é surpreendente – e lamentável – que o Supremo Tribunal Federal tenha demorado mais de vinte anos para reconhecer a inconstitucionalidade da execução da pena antes do trânsito em julgado da decisão condenatória[3]. Isto é, o tribunal guardião da Constituição passou mais de duas décadas decidindo contra o texto expresso do artigo 5º, LVII, da Carta Política.

Surpreendentemente, segundo notícias da mídia especializada[4], o Supremo Tribunal Federal ensaia retroceder ao entendimento anterior, por meio do qual a execução antecipada da pena passaria a ser, novamente, constitucional. Os defensores deste entendimento escoram-se no fato de que, em nenhum outro País do mundo, é necessário aguardar-se o trânsito em julgado para iniciar a execução da pena.

O problema é que em nenhum outro País do mundo a Constituição normatizou o princípio da presunção de inocência de maneira tão ampla, condicionando a culpa ao trânsito em julgado da condenação. Assim, em nossa Constituição, buscou-se proteger o indivíduo dos abusos do poder estatal. Bem ou mal, foi assim que o legislador constituinte originário procedeu, não cabendo ao judiciário limitar o alcance da garantia.

Supondo que o nosso texto constitucional não fosse explícito ao condicionar a perda da presunção de inocência ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, poderia o Supremo Tribunal Federal voltar atrás e admitir novamente a execução antecipada da pena?

Ao menos de acordo com o princípio da proibição do retrocesso, não. De acordo com a doutrina, o princípio da proibição do retrocesso impede que o Estado retroceda na aplicação dos direitos humanos. Destarte, uma vez que o próprio Supremo Tribunal Federal, a partir de um determinado momento, passou a entender que a execução antecipada da pena seria incompatível com o princípio da presunção de inocência, o Tribunal não poderia retroceder em razão do princípio da proibição do retrocesso.

Por outro lado, a existência de aludido princípio no ordenamento jurídico brasileiro já foi reconhecida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.350.

Em conclusão, não fosse pela clareza solar da redação do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal não pode retroceder na interpretação dada ao princípio da presunção de inocência para admitir a execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Bruno Augusto Gonçalves Vianna

OAB/PR 31.246

Texto publicado por Silverio e Vianna Advocacia Criminal

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[1] SARLET, Ingo Wolfgag. Notas introdutórias ao sistema constitucional de direitos e deveres fundamentais. In Comentários à Constituição do Brasil. Org, J.J. Gomes Canotilho e outros. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 184.

[2] Não obstante a redação falar em “não culpabilidade”, levando parte importante da doutrina e da jurisprudência a realizar uma diferenciação entre “princípio da presunção da inocência” e “princípio da presunção de não culpabilidade”, parece-nos que a distinção é claramente artificial. Nesse sentido, Gustavo Badaró é categórico ao afirmar ser inútil procurar distinguir o conteúdo de aludidas expressões (Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo:RT, 2003, p. 283.

[3] HC 84.078.

[4] http://jota.info/stf-pode-mudar-de-opiniao-sobre-prisao-antes-de-acordao. Acesso em 15.12.2015.