Sabe-se que os recursos excepcionais são recursos de fundamentação vinculada, na medida em que tratam apenas questões de direito previstas nos artigos 102III, e 105III, da Constituição Federal.

Logo, para que o mérito dos recursos excepcionais possa ser analisado, deve haver um anterior juízo de admissibilidade. Este juízo de admissibilidade diz respeito à verificação da possibilidade de o recurso ser admitido, o que implica na aferição dos pressupostos de admissibilidade do recurso como o cabimento, a tempestividade, o interesse de recorrer, etc.

O juízo de admissibilidade é realizado, em regra, pela presidência ou vice-presidência do Tribunal prolator do acórdão guerreado. Pode-se concluir, portanto, que ao Tribunal a quo compete analisar apenas os pressupostos de admissibilidade do recurso, cabendo aos Tribunais Superiores analisar, além de tais pressupostos, o mérito recursal.

A doutrina é categórica nesse sentido:

 

“Portanto, a situação fática que corresponde ao preenchimento dos requisitos exigidos pela hipótese constitucional de cabimento do recurso extraordinário prevista na alínea a do art. 102, III, da CF (e também do recurso especial, prevista na alínea ado art. 105, III) consiste na alegação razoável e plausível, por parte do recorrente, de ter a decisão recorrida contrariado dispositivo constitucional (ou dispositivo legal, no caso do recurso especial), ficando o exame de ter ou não havido efetivamente a alegada contrariedade reservado ao STF (ou STJ), como questão de mérito do recurso, da qual resultará o provimento ou não do mesmo, e não seu conhecimento ou inadmissão”[1]

 

Radica neste ponto a temática que justifica este ensaio, pois recentemente esta lógica recursal tem sido deixada de lado por nossos Tribunais.

Faz-se essa afirmação porque os Tribunais estaduais e regionais, recentemente, ao analisarem a admissibilidade dos recursos constitucionais, tem se manifestado quanto ao mérito de tais recursos, em que pese tal análise ser de competência constitucional das Cortes Superiores.

 

Este proceder não encontra azo na doutrina. Nelson Nery Júnior, ao enfrentar o tema, fez questão de frisar que, em sede de recursos constitucionais, o juízo de admissibilidade efetuado pelos Tribunais Estaduais e Regionais deve ser limitado à análise dos pressupostos recursais ordinários, senão vejamos:

 

“Salvo no recurso de agravo (de instrumento ou retido), e no caso de apelação interposta contra sentença de indeferimento da petição inicial (art. 296, CPC), em nenhuma outra hipótese poderá o juízo a quo manifestar-se sobre o mérito do recurso. Infelizmente tem-se verificado amiúde o mau vezo de os tribunais estaduais e regionais federais indeferirem o processamento do recurso extraordinário, ingressando no exame do mérito. É o que se dá, por exemplo, quando o tribunal entende que o acórdão recorrido ‘não violou a Constituição ou a lei federal’.

 

A efetiva violação da Constituição Federal, que é um dos casos de recurso extraordinário (art. 102, inc. III, ‘a’, CF), é o próprio mérito do recurso. O que cabe ao tribunal examinar é a admissibilidade do recurso. Na hipótese ventilada, a tão-somente alegação de inconstitucionalidade já preenche o requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. Basta, portanto, haver mera alegação de ofensa à Constituição para que seja vedado ao tribunal federal ou estadual proferir juízo de admissibilidade negativo ao apelo extremo[2]”.

 

Em outras palavras, os Tribunais Estaduais e Regionais, nos termos do que preleciona a doutrina, não podem alargar a própria competência e analisar o mérito dos recursos constitucionais. A própria jurisprudência da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o assunto, oportunidade em que acatou a orientação doutrinária:

 

“PENAL E PROCESSO PENAL. RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DESTA CORTE. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. DECLARAÇÃO DE PRESCRIÇÃO. AUSÊNCIA DE JURISDIÇÃO. INOCORRÊNCIA. REQUISITO LEGAL OBJETIVO. INEXISTÊNCIA DE FATO IMPEDITIVO OU EXTINTIVO. PRESCRIÇÃO DEVIDAMENTE RECONHECIDA. RECLAMAÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

(…)

2. A análise da admissibilidade do recurso especial, realizada pelo Tribunal de origem, restringe-se ao exame dos requisitos formais, não se podendo adentrar na matéria de fundo. (…)[3].”

 

A Ministra Maria Thereza, relatora do acórdão cuja ementa foi reproduzida, ao proferir seu voto, asseverou:

 

Destaque-se que, no momento em que o Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem, a depender do regimento, passa à análise da admissibilidade do recurso especial, aquela Corte não possui mais jurisdição para decidir eventuais matérias afetas à causa (matéria de fundo), mas apenas para dar ou não seguimento ao recurso (exame de requisitos formais), após a análise de seus pressupostos gerais e constitucionais. Ao ensejo, confira-se o enunciado nº 123 deste Superior Tribunal de Justiça: “A decisão que admite, ou não, o recurso especial deve ser fundamentada, com o exame dos seus pressupostos gerais e constitucionais”.

Com efeito, é inclusive pressuposto recursal o esgotamento da instância ordinária, assim, não se afigura plausível o aprofundamento pelo Tribunal de origem na questão posta, ou seja, não pode analisar a questão de mérito do recurso especial, cuja análise compete, constitucionalmente, ao Superior Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 105 da Constituição Federal.”

 

Nada obstante, a verdade é que o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que tanto os Tribunais Estaduais quanto os Tribunais Regionais podem, ao analisarem a admissibilidade dos recursos excepcionais, adentrar no mérito de tais recursos. Este giro na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pode ser observado pelo trecho do voto proferido pelo Ministro Sérgio Kukina no julgamento do agravo regimental no agravo em recurso especial nº 295.224, no âmbito da 1ª turma:

 

“Conforme jurisprudência desta Corte, não há usurpação da competência do Superior Tribunal de Justiça quando o Tribunal de origem, ao realizar o juízo de admissibilidade do recurso especial, analisa os pressupostos específicos e constitucionais concernentes ao mérito da controvérsia, conforme o disposto na Súmula 123/STJ.”[4]

 

Apesar do giro evidenciado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a verdade é que a doutrina continua a refutar este novel posicionamento.

Aliás, este entendimento já foi rechaçado por Barbosa Moreira que, de forma veemente, afirma ser ilícito ao presidente ou vice-presidente do Tribunal prolator do acórdão recorrido examinar o mérito do recurso excepcional:

 

“Não compete ao presidente ou vice-presidente examinar o mérito do recurso extraordinário ou especial, nem lhe é lícito indeferi-lo por entender que o recorrente não tem razão: estaria, ao fazê-lo, usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça. Toca-lhe, porém, apreciar todos os aspectos da admissibilidade do recurso. Se o recurso é denegado, pode o recorrente agravar de instrumento, conforme a hipótese, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça (art. 544). Se admitido, o pronunciamento, irrevogável (mas anulável, quiçá mediante agravo regimental, caso haja error in procedendo).”[5]

 

Como se não bastasse, além do óbice doutrinário, este posicionamento encontra óbice constitucional, sendo certo que a Constituição da República outorgou aos Tribunais Superiores a competência para análise de mérito dos recursos excepcionais.

Conclui-se, destarte, que os Tribunais Estaduais e Regionais, ao analisarem a admissibilidade dos recursos excepcionais, não devem ingressar na análise meritória dos recursos, sob pena de invadirem, indevidamente, competência assegurada pela constituição às cortes superiores.

 

 

Alessandro Silverio

OAB/PR 27.158

Texto publicado por Silverio e Vianna Advocacia Criminal

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[1] PINTO, Nelson Luiz. Código de Processo Civil interpretado. MARCATO, Antonio Carlos (coord.). 3. Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 1826.

[2] Nelson Nery Jr., Teoria Geral dos Recursos, 2000, Ed. RT., p. 226.

[3] STJ, RCL 4.515, 3ª Seção, rel. Maria Thereza Rocha de Assis Moura, DJ 30.05.2011.

[4] STJ, AgRg no AREsp 295.224⁄CE, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 13⁄05⁄2013

[5] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 15. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, página609.