O estado do Paraná, por intermédio das leis estaduais 13.212/2001 e 13.214/2001, concedeu benefícios tributários às empresas que fabricassem seus produtos no estado do Paraná. Como esse tratamento tributário diferido prejudicava a arrecadação de outros entes federados, o estado de São Paulo aviou, perante o Supremo Tribunal Federal, ação direta de inconstitucionalidade, pugnando pela declaração de inconstitucionalidade das leis tributárias paranaenses.

 

A Suprema Corte brasileira, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2548 ocorrido em data de 10/11/2006, à unanimidade, julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade, declarando, portanto, inconstitucional as Leis 13.212/2001 e 13.214/2001 do estado do Paraná por infringência ao conteúdo do artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, letra (g), da Constituição Federal.

 

Pois bem, após a declaração de inconstitucionalidade das normas tributárias editadas pelo estado do Paraná, o fisco paulista passou a autuar as empresas que se valeram das leis estaduais declaradas inconstitucionais para recolher tributos a menor. Como se não bastasse, após o encerramento do procedimento administrativo fiscal, o fisco paulista passou a remeter cópia dos autos para o Ministério Público bandeirante a fim de que a eventual responsabilidade penal fosse apurada. Como consequência houve a instauração de inúmeros inquéritos policiais.

 

Resta saber, contudo, se existe ilícito penal de índole tributária no comportamento dos administradores das empresas que, durante o período de vigência das normas tributárias declaradas inconstitucionais, recolheram tributo a menor com base em tais normas?

 

A resposta deve ser negativa.

 

Note-se: sempre se sustentou a autonomia na relação entre as instâncias penal e administrativa tributária. Todavia, após o julgamento do Habeas Corpus nº 81.611, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence no âmbito do Supremo Tribunal Federal que, posteriormente, redundou na edição do verbete sumular vinculante nº 24 no âmbito daquela Suprema Corte, a verdade é que as instâncias penal e administrativa tributária passaram a estar vinculadas.

 

Assim, as leis tributárias editadas pelo estado do Paraná e declaradas inconstitucionais pelo Supremo passaram a poder produzir efeitos na seara penal. E é nesse sentido que se sustenta que a declaração de inconstitucionalidade de tais normas não poderia produzir efeitos criminais pretéritos, sob pena de se violar o princípio da legalidade.

 

Ora, os contribuintes beneficiados com as normas estaduais declaradas inconstitucionais pelo Supremo pagaram tributo a menor apenas no período de vigência de tais normas e porque referidas normas assim dispunham, sendo certo imaginar, dado o vínculo existente entre as instâncias penal e administrativa, que a declaração de inconstitucionalidade das leis estaduais por parte do Supremo não pode fazer com que os efeitos dessa decisão declaratória de inconstitucionalidade, na esfera penal, retroajam para atingir criminalmente fatos pretéritos.

 

Portanto, embora, em regra, a decisão declaratória de inconstitucionalidade tenha efeito ex tunc (efeitos retroativos à data dos fatos), no caso de declaração de inconstitucionalidade de norma penal mais benéfica, tal decisão deve ter efeito ex nunc, ou seja, nunca deve retroagir.

 

Aliás, a respeito da declaração de inconstitucionalidade de norma penal mais benéfica, se manifesta Guilherme de Souza Nucci, frisando que nesta situação o controle de constitucionalidade deve surtir efeito ex nunc:

 

Mas quando o Supremo Tribunal Federal exercer o controle de constitucionalidade direto, declarando inconstitucional uma norma penal benéfica, já utilizada por vários magistrados, por exemplo, deve aplicar o efeito ex nunc ( produz efeitos somente a partir da decisão de inconstitucionalidade) à sua decisão , sob pena de gerar prejuízos incalculáveis à segurança jurídica e ao indivíduo, que culpa não teve quando o Estado gerou uma norma em desacordo com a Constituição Federal.[1]

 

Ademais, para além de qualquer discussão acerca dos efeitos advindos da declaração de inconstitucionalidade das normas tributárias, verifica-se a inexistência de crime contra a ordem tributária, uma vez que tais ilícitos dependem do dolo do agente. Ressalte-se que o juízo positivo de tipicidade nos crimes contra a ordem tributária pressupõe a fraude, isto é, o comportamento dos agentes beneficiados com as leis estaduais declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal deveria objetivar iludir, através do engodo ou do ardil, a receita do erário paulista, o que, a toda evidência, não ocorreu naquelas hipóteses, pois existia texto normativo que autorizava os contribuintes a assim agir.

 

Inúmeros são os precedentes jurisprudenciais nesse sentido, podendo ser destacadada a decisão proferida pela 1ª turma do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC nº 72.584, relatado pelo Ministro Marco Aurélio:


“CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTARIA – ICMS – ALIQUOTAS DIFERENCIADAS – CREDITAMENTO – FRAUDE. A fraude pressupoe vontade livre e consciente. Longe fica de configura-la, tal como tipificada no inciso II do artigo 1. da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o lancamento de crédito, considerada a diferença das aliquotas praticadas no Estado de destino e no de origem. Descabe confundir interpretação erronea de normas tributarias, passivel de ocorrer quer por parte do contribuinte ou da Fazenda, com o ato penalmente glosado, em que sempre se presume o consentimento viciado e o objetivo de alcancar proveito sabidamente ilicito.”

 

Como se percebe, o eventual dano ao erário paulista que justificou o lançamento dos tributos em dívida ativa e consequencialmente justificou a instauração dos procedimentos investigatórios de natureza criminal se devem à chamada Guerra Fiscal, uma vez que o estado do Paraná editou uma lei tributária prejudicial aos cofres públicos do estado de São Paulo sem a autorização do CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária).

 

Ocorre, porém, que a jurisprudência do próprio Tribunal de Justiça do estado de São Paulo tem trancado inquéritos policiais e ações penais originados da chamada Guerra Fiscais:

 

“Denúncia. Rejeição. Crime contra a ordem tributária. Artigo 1º, inciso II, da Lei n.º 8.137/90. Realização de operação com lastro em benefício fiscal concedido pelo Distrito Federal e não ratificado pelo CONFAZ. Redução de tributo apurada na via administrativa, com inscrição do débito na dívida ativa. Conduta, todavia, que não caracteriza crime. Ausência de dolo de fraudar a fiscalização tributária, na medida em que a operação foi baseada em ato oficial emanado de ente federado, daí decorrendo a ausência de justa causa para a ação penal. Recurso improvido[2]”.

 

Conclui-se, portanto, que não existe ilítico penal tributário derivado da Guerra Fiscal.

 

 

Alessandro Silverio

Advogado criminalista

OAB/PR 27.158

 

 

Texto publicado por Silverio e Vianna Advocacia Criminal

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